A Janete Costa e Lélia Coelho Frota, 

pela dedicação amorosa ao estudo e à valorização da arte popular brasileira 

Entreolhares – Poéticas d’Alma Brasileira 

Voltada para a arte do povo brasileiro, a exposição abarca um longo período, desde as décadas de 1940 e 1950 até a contemporaneidade. Procuramos reunir um conjunto abrangente e diversificado da expressão autoral de criatividade popular, das carrancas do mestre Guarany e das cerâmicas do mestre Vitalino aos grandes mestres atuais, muitos deles ainda ativos nas diversas regiões do Brasil. Incluímos alguns artistas modernos e contemporâneos apenas para sinalizar e sublinhar poéticas que se nutrem do imaginário popular: Di Cavalcanti, Tarsila, Cícero Dias, Guignard, Volpi, Rubem Valentim, Cláudio Tozzi, Rubens Gerchman, Nelson Leirner, entre outros.

Sabemos que o artista popular não reivindica nem procura estabelecer status de artista erudito. São os historiadores e os críticos que classificam a arte como acadêmica, moderna, contemporânea ou popular. O fazer do artista popular segue ritmo próprio e, embora não persiga vanguardismos, raramente se expressa de modo anacrônico. É sempre atual. Vale ressaltar, também, que foram os artistas modernos e contemporâneos que tiveram um olhar sensível para as poéticas populares.

O fazer e o imaginário coletivo

Para o artista popular, criar é um ato de afirmação de sua identidade e de seu saber fazer. Tem função integradora no ambiente onde vive, pois seu fazer e sua fabulação ocorrem, quase sempre, ligados a um imaginário coletivo. A arte popular exalta os valores culturais de seu meio social e estabelece, na maioria das vezes, estreita relação entre o real e o fantástico – isto é, um fantástico que já faz parte do mundo real.

A arte popular é de celebração. Celebrar a vida e a natureza são modos de se integrar aos acontecimentos, à memória e aos sonhos da coletividade. Ao mesmo tempo, é uma forma de reinventá-los. Na reinvenção do real, a fabulação da natureza e de suas forças não significa alienação; representa, isso sim, vontade de ser, de agir e de mover-se no mundo.

Nesse contexto, a fabulação está vinculada à tradição, aos costumes e às crenças regionais. O mesmo ocorre com os artistas de forte expressão autoral. O imaginário coletivo é a força que impulsiona a fabulação e é fonte para novas narrativas. São raros os exemplos de poéticas visuais que acontecem fora desse âmbito, como as pinturas de Júlio Martins da Silva (1893-1978), que apresentam extraordinária fatura pictórica, plena de lirismo e refinamento, apesar de terem sido criadas num ambiente urbano de escassez e de infortúnios.

O artista popular é um artesão, quer dizer, privilegia o fazer. Para ele, a maestria está intimamente ligada ao modo como executa seu trabalho, à maneira como domina o material escolhido para sua expressão (madeira, barro, pedra, tecido, tintas etc.), que é o elemento essencial de sua linguagem, pois o fazer está imbricado na fabulação. A maestria, isto é, a tensão criativa está no saber fazer. Às vezes, de um requintado saber fazer. O autor sempre manifesta com orgulho seu ofício. 

Muitos dos artistas presentes nesta exposição viveram e criaram suas obras no mundo rural, afastados do circuito das artes, alheios às tendências artísticas que movimentam o meio cultural. Grande parte de sua produção está voltada para seu povoado, para sua região. O artista popular vive e cria entre os seus e para os seus. Quando, depois de ter sido descoberto pelo mercado de artes, o artista aceita suas demandas, não raro a obra decai, perde seu frescor e sua vitalidade.

Diversas regiões ficaram famosas pela qualidade da produção artística popular e se transformaram em centros relevantes para a produção de cerâmicas. É o caso do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, com destaque para as peças realistas de Izabel Mendes da Cunha (1924-2014) e Noemiza Batista dos Santos ou para o imaginário fantástico de Ulisses Pereira Chaves (1924-2007). Exemplar, também, é a região do entorno de Caruaru, em Pernambuco, que teve a presença de três mestres: Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), Zé Caboclo (Antônio Rodrigues da Silva, 1921-1973) e Manuel Eudócio Rodrigues (1931-2016), verdadeiros cronistas do cotidiano rural e urbano, das festas e das folias regionais. Outra região de Pernambuco que reuniu ceramistas foi Tracunhaém, na Zona da Mata, próxima de Recife. Os artistas de Tracunhaém desenvolveram uma produção de temática mais religiosa, influenciados por Maria Amélia da Silva. Alguns voltaram-se para outras temáticas, como o mestre Nuca e Manuel Borges da Silva (1937-2014), famosos por seus leões. 

Os ceramistas usam uma infinidade de tipos de barro, descobrem a melhor mistura num processo de ensaio e erro para obter cerâmicas mais bonitas e que não rachem com o calor do forno. O barro é tão importante que, quando é bom, eles chamam de mina de barro. A técnica da queima, além de passar de geração em geração, também é discutida entre eles, para ser aperfeiçoada e garantir uma fornada de cerâmicas com o mínimo de perdas. Os tipos de forno – que os próprios ceramistas constroem – variam de região para região, e às vezes, na mesma região, de ceramista para ceramista. 

Os artistas que migraram para as grandes cidades, ou os que já nasceram nelas, viveram geralmente na periferia, distantes do centro urbano, onde a atividade cultural das elites se consagra. A maioria produziu nas horas vagas, depois de passar o dia trabalhando em outras atividades para ganhar seu sustento. Em muitos casos, a produção artística representou uma ocupação secundária, circunscrita à intimidade, pouco exibida, mesmo em seu meio social. Foram raros os que conseguiram tirar seu sustento desse trabalho. Em Embu, cidade periférica a São Paulo, surgiu nos anos 1960 um grupo de artistas afrodescendentes, pintores e escultores que expunham ao ar livre na Praça da República, no centro de São Paulo. Entre eles, dois artistas se sobressaíram: Maria Auxiliadora da Silva (1938-1974) e Waldomiro de Deus. Impulsionados pelo crítico Mário Schenberg (1914-1990), tiveram sucesso no meio da arte culta e suas pinturas eram disputadas pelos colecionadores. 

O reconhecimento da arte popular

Antes do século 20 foram raros os comentários e registros da expressão vernacular em nosso país. Ela só despertou interesse quando vários intelectuais resolveram estudá-la, a partir da década de 1920. Assim sendo, são poucos os registros que permaneceram da produção vernacular anteriores ao século passado. Felizmente, preservou-se parte da expressão da religiosidade popular, manifestada na arte dos santeiros populares, que foram abundantes. Muitas dessas imagens foram preservadas nas casas, capelas e igrejas de todo o Brasil, principalmente no mundo rural. Podemos assim conhecer a magnífica criação do imaginário religioso das camadas mais pobres da sociedade, inclusive dos escravos, que encontraram modos próprios de expressar sua devoção. 

Grande parte dessa expressão popular foi realizada através de meios técnicos precários e limitados. O isolamento produziu soluções que se diferenciaram dos modelos clássicos importados da Europa. Contudo, muitas imagens revelam extraordinária qualidade artística, mesmo quando confrontada com a grande arte religiosa oficial. Como exemplo disso, podemos mencionar as imagens de santo Antônio esculpidas em nó de pinho, criadas em regiões próximas à cidade de São Paulo, provavelmente no início do século 19. São peças de talha simples, de sínteses formais, às vezes geométricas, com forte influência africana e que trazem um sincretismo religioso raro no imaginário brasileiro daquele período. Certamente, as imagens de nó de pinho foram feitas por escravos que trabalhavam nos cafezais paulistas. Restou ainda um rico acervo de pinturas populares que foi preservado na forma de ex-votos em sacristias e capelas. São tábuas votivas que trazem a narrativa da benção ou do milagre concedido. Essa prática ocorreu a partir do século 18, principalmente em Minas Gerais. 

Vale lembrar que os modernistas foram os primeiros a demonstrar interesse pela expressão vernacular. Mário de Andrade já havia iniciado pesquisas sobre folclore e artesanato na década de 1920. No romance Macunaíma, publicado em 1927, ele demonstrou interesse pelo Brasil profundo, por suas lendas e crendices. Como já dissemos, obras de Tarsila do Amaral (1886-1973), Di Cavalcanti (1897-1976), Anita Malfatti (1889-1964), Cícero Dias (1907-2003), entre vários outros artistas, dão mostras de proximidade poética com a expressão popular, mas apenas na década de 1940 houve real interesse em incorporá-la ao circuito da arte moderna – nos museus, nas grandes exposições, nas galerias.

A força da arte popular nos anos 1940 e na atualidade

Lélia Coelho Frota (1938-2010), poeta e estudiosa da arte popular, chamou nossa atenção para a presença do crítico e pintor suíço Jean-Pierre Chabloz (1910-1984), que, em viagem a Fortaleza, no Ceará, em 1943, descobriu e divulgou a obra de Chico da Silva (Francisco Domingos da Silva, 1910-1985), que logo ganhou enorme prestígio. No Rio de Janeiro, o pintor de domingo João Bernardo Cardoso Junior, conhecido como Cardosinho (1861-1947), incentivado por Portinari, participou da exposição Pintores Modernos Brasileiros, realizada em Londres em 1944. 

Pouco depois, em 1946 – ano em que o Museu do Louvre incorporou no acervo o trabalho naïf de Douanier Rousseau (1844-1910) –, Lourival Gomes Machado (1917-1967) e Paulo Mendes de Almeida (1905-1986) tiveram contato com as pinturas de José Antônio da Silva (1909-1996), em São José do Rio Preto, São Paulo. Em pouco tempo, o artista ganhou notoriedade no ambiente da arte culta: Pietro Maria Bardi (1900-1999), diretor do recémcriado Museu de Arte de São Paulo, adquiriu, em 1949, várias obras do artista, sendo que a pintura Colheita de Algodão foi incorporada ao acervo do museu; e na I Bienal de São Paulo, realizada em 1951, José Antônio da Silva recebeu o prêmio de aquisição do Museu de Arte Moderna de Nova York. 

Em 1947, Augusto Rodrigues (1913-1993) se surpreendeu em Caruaru com a obra de Vitalino e, nesse mesmo ano, organizou no Rio de Janeiro a 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana, com prefácio de Joaquim Cardozo, que escreveu:

“Aqueles que entrarem nesta sala, livres de conceitos prejulgados ou com o espírito cuidadosamente desprovido dos símbolos e expressões nele criados pelo automatismo da memória, verão que as formas puras da beleza nem sempre repousam nas terras altas da ciência e da sabedoria dos grandes artistas, mas descem, como pássaros divinos, sobre a igualdade dos homens comuns”.

Segundo Lélia Coelho Frota, essa exposição é histórica:

“Instaura, definitivamente, com maior raio de alcance, a consciência, ou uma primeira consciência, nas elites, da existência e interesse da arte dos ‘primitivos’ e das artes populares”. 

Também no mesmo ano, o fotógrafo e antropólogo francês Pierre Verger (1902-1996) realizou um extraordinário ensaio fotográfico sobre a obra do mestre Vitalino. E em 1949, o professor Bardi, sensível às manifestações culturais do povo brasileiro, realizou no Masp a mostra Cerâmica Nordestina

Nos festejos do IV Centenário da cidade de São Paulo, em 1954, foram expostas dez carrancas de embarcações do Rio São Francisco num pequeno pavilhão do Parque do Ibirapuera. E no ano seguinte a revista Módulo publicou o artigo “Carrancas de proa do São Francisco”, com fotografias de Marcel Gautherot (1910-1996). Desde então, as carrancas do mestre Guarany (Francisco Biquiba Dy La Fuente Guarany, 1882-1985) foram valorizadas no mercado de arte. Um dos primeiros a adquiri-las foi o escultor Agnaldo dos Santos (1926-1962), grande mestre brasileiro na escultura de madeira.

As obras de Vitalino e as carrancas de Guarany repercutiram no meio artístico e chamaram atenção do circuito das artes para a arte popular de expressão autoral. Djanira (1914-1979), Heitor dos Prazeres (1898-1966), José Antônio da Silva e Agnaldo dos Santos foram prestigiados e participaram de várias exposições no Brasil e no exterior, como também das primeiras Bienais de São Paulo. Os principais intelectuais, formadores do conceito de modernidade no Brasil, como Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade, Sérgio Milliet (1898-1966) e Mário Pedrosa (1901-1981), detiveram seu olhar e sua reflexão à produção de arte popular e escreveram sobre o significado, a beleza e o engenho dessa expressão.

O domínio da abstração no decorrer dos anos 1950, sobretudo das correntes construtivas, afastou do debate as tendências figurativas, e em decorrência disso a arte popular perdeu interesse e prestígio no circuito. Entretanto, com a volta da figuração na década de 1960, artistas como Rubens Gerchman (1942-2008), Hélio Oiticica (1937-1980), Cláudio Tozzi, Nelson Leirner e tantos outros desenvolveram poéticas de forte imersão popular.

Percebe-se, também, em nossos dias, grande confluência entre poéticas de artistas contemporâneos (Efrain Almeida, Marepe, Emmanuel Nassar) e populares (Véio, José Bezerra, Marinaldo Santos). Nos últimos anos, são muitos os críticos de arte voltados à analise da arte contemporânea que se interessam pelo estudo de artistas de expressão popular. Vilma Eid, através do Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro e da Galeria Estação, desenvolve um trabalho importante de aproximação entre a arte culta e a arte popular. Recentemente, 100 esculturas do Véio (Cícero Alves dos Santos) foram expostas em mostra paralela à 56ª Bienal de Veneza, na Igreja de San Gregorio, despertando enorme interesse.

O Museu Afro Brasil é, certamente, a instituição museológica que mais acolhe a arte popular, tanto em seu acervo quanto na programação de suas exposições. As mostras da coleção, organizadas por Emanoel Araújo, geralmente ultrapassam a abordagem artística para abranger aspectos sociais, etnográficos e antropológicos e, desse modo, contextualizam a expressão do artista popular, dando maior significado a sua produção.

As poéticas da natureza 

Diante da força da natureza, o ser humano é frágil. Muitas vezes, ela põe nossa vida em perigo; em outras, provoca a morte. No mundo rural, não raro os fenômenos naturais adquirem dimensão sagrada por seu poder. Ficamos à mercê de forças misteriosas e incontroláveis, que no imaginário popular germinam uma rica fabulação. Existe, também, o lado bom: os frutos, as flores e tantas benesses e, para tal, há um calendário de festas e de muita alegria para agradecer as dádivas da natureza, as colheitas fartas. 

O ceramista Ulisses Pereira Chaves, do Vale do Jequitinhonha, no belo depoimento dado a César Aché, em julho de 1989, e transcrito por Maureen Bisilliat no catálogo do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina, relata sua relação com as forças da natureza: 

“Artesão tem de mudar, mudar a experiência, a palavra tem de ser nova. Eu só vou para a frente, não volto para trás; é como a água – só a água viva é que vai para a frente. A terra é viva, a montanha é viva, o barro é vivo, o fogo também é. Eu converso com as aves, com as montanhas, a lua cheia…”. 

E mais adiante:

“Trabalho com qualquer barro, converso com ele e a peça sai. Se o barro está fraco, ele fala, diz para onde vai, de onde vem. A Lua domina o barro. Na Lua minguante, às vezes fica fraco, na Lua nova, a energia é demais, as peças explodem, estalam. A Lua domina tudo”.

O pintor José Antônio da Silva criou uma ampla narrativa do mundo rural, das grandes plantações do interior de São Paulo. Nilson Pimenta, artista baiano radicado em Cuiabá, pintou a vida pantaneira: os vaqueiros, os barqueiros dos rios imensos, as queimadas da floresta, as colheitas de cana-de-açúcar, os bichos do mato. Entretanto, em entrevista a Edna Matosinho de Pontes, Nilson Pimenta afirma nunca ter estado no Pantanal.

Sempre com as lembranças?

“Eu tinha para mim que estava fazendo um filme para mim, então todo meu quadro hoje ele parece um filme de contar a história de todo mundo, como eu falei da carroça aí, então os bichos fizeram parte do meu quadro, então eu tenho um elenco de faz de conta no meu quadro que é macaco, que é onça, cavalo, a bicharada inteira.”

Na roça você convivia com esses animais?

“Convivia. Eu convivia um pouco, vendo animais no céu, na água, na lagoa.”

Faziam parte?

“Eu fiquei pintando muita coisa da roça, fazendo coisa do Pantanal e coisa e tal, mas eu tenho 50 anos em Cuiabá e não conheço o Pantanal, então eu sou pintor de Pantanal só que nunca vi o Pantanal.”

Nunca viu o Pantanal?

“Nunca fui para lá, já ganhei prêmio, já vendi muito quadro de casamento, só que eu fazia história, como é que viviam os ribeirinhos e tudo, mas que casava e que morria, eu quero fazer a história, e se eu fosse para o Pantanal veria tudo de uma vez, eu não queria copiar os bichos, eu queria imaginar e fazer.”

Também as carrancas do mestre Guarany, na proa das embarcações do Rio São Francisco, têm função mística diante das forças naturais. Dizia o mestre que: 

“A carranca bem-feita é aquela que quando é vista no espelho das águas se mexe como coisa viva”. 

A carranca faz parte da luta do barqueiro contra os perigos do rio. Afugenta os maus espíritos, protege os navegantes. No poema em homenagem ao centenário do artista, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu: 

“Das mãos de Guarany surdiram monstros

que colocados na proa dos barcos

protegiam os viajantes contra os terrores do rio”.

Nas crendices populares, a natureza também é povoada por animais fantásticos e seres ameaçadores. Chico da Silva foi pintor de bichos assombrosos, de sereias, dragões e peixes voadores, oriundos de seu imaginário e de lendas amazônicas. A arte popular é rica na representação de animais reais. Bichos do mato, onças, macacos, cobras, sapos, entre tantos outros. E os animais da roça, sobretudo bois e cavalos. Também leões e dragões, animais temidos, são representados nas mais diversas regiões do país. 

A força da cultura afro-brasileira

A presença da cultura africana no Brasil é oriunda principalmente das costas ocidentais da África. Deuses e entidades religiosas africanas fundiram-se com as imagens de santos católicos e com os mitos indígenas. As entidades sagradas e seus rituais exerceram enorme influência cultural, desde o século 17. Muitos artistas populares, mesmo sem ascendência africana, desenvolveram linguagens fortemente influenciadas pela África, notadamente na escultura. Podemos ressaltar que no meio popular não há uma separação significativa entre etnias e culturas. 

O tema dos cultos africanos, do candomblé, tem sido recorrente na arte popular. Paulo Pedro Leal (1894-1968), pintor de naufrágios, de batalhas e do submundo carioca, foi pai de santo e pintou cenas de terreiro, sempre com a expressão dramática que caracterizava sua poética. As culturas – negra, indígena e europeia – convivem na pintura do artista. Alzira, que foi sua mulher, em depoimento dado a Lélia Coelho Frota, disse que Paulo Pedro: 

“Era de nagô mas recebia o velho congo de Arruda e de Guiné, Xangô, Sete Encruzilhadas e Ogum, seu Rei da Mata. Para receber Exu Sete Encruzilhadas vestia camisa vermelha e um capacete. Para o velho congo de Angola, camisa carijó e cachimbo. Para seu Rei da Mata, ficava sem camisa, com uma golazinha de continha, calça verde, descalço, cachimbo”. 

Fantasia e erotismo

O erotismo e a sexualidade têm força extraordinária no imaginário popular. Seduzido por demônios, o desejo sexual aflora e jorra com a força das correntezas dos grandes rios, arrastando tudo com suas águas. Na mente desses artistas habitam seres fantásticos de forte poder de sedução e de encantamento. 

São muitas as representações artísticas da sexualidade, algumas elaboradas de modo sutil, outras de forma explícita, como, por exemplo, na obra escultórica de Chico Tabibuia, (Francisco Morais da Silva, 1936-2007). Ele reinventou exus, que são figuras mitológicas com forte carga sexual. O artista, certa vez, declarou que, ao representá-los, fazia com que ficassem aprisionados na escultura, “para não fazerem mais mal ao povo”, cada vez mais “fugidos das matas”, onde poderiam atuar em liberdade. Tabibuia, que foi lenhador, recebeu esse apelido em referência a um tipo de madeira encontrado na Mata Atlântica. 

Outros artistas, como Júlio Martins da Silva, expressam sua sexualidade de modo sutil. Silva é um dos expoentes da pintura lírica, metafísica; pintor de paisagens, ou melhor, de ordenados jardins com suas veredas, fontes, flores e pomares, povoados por elegantes jovens que passeiam de mãos dadas como em sonhos. Tudo em perfeita harmonia. O mundo criado por Júlio Martins é atemporal e de intensa espiritualidade. O tratamento pictórico sugere cenas inacessíveis, feitas para ser vistas com distanciamento, admiradas. A paisagem está repleta de símbolos eróticos, que são tratados pelo artista com pureza e castidade. Tudo é diáfano, não há carnalidade. Essa sensualidade refinada é muito rara na arte popular. Lembra O Jardim dos Fizi-Contini, filme dirigido por Vittorio de Sica (1901-1974) baseado no romance de Giorgio Bassani (1916-2000), no qual o jardim de beleza, tal qual um paraíso, parece proteger-nos dos horrores do mundo real. Curiosamente, em suas pinturas aparecem apenas personagens brancas, todas elegantemente vestidas, embora Júlio Martins fosse negro e vivesse na pobreza.

Na obra de Mirian Inês da Silva (1939-1996), o erotismo é quase juvenil. A artista criou pinturas, sempre de pequeno formato, com narrativas de um realismo descritivo, mas cheio de magia, de encantamento. As cenas sensuais registram momentos de sedução, mas com sexualidade sublimada. Eros está presente, mas o sexo permanece latente. Há em suas pinturas uma forte noção do pecado; aliás, todos os sete foram representados. A luta do bem contra o mal, presente em sua obra por meio de anjos e santos que vencem dragões e demônios, é tema recorrente no imaginário popular.

O cotidiano popular, festas e religiosidade

A expressão do artista popular parte das experiências vividas, nutre-se das crenças e dos rituais e festas de sua comunidade. Certas festas são celebradas em todo o país, outras são estritamente regionais. Mas festa é alegria, nela o povo se reúne, se diverte, dá risada, como nas cenas de dança do pintor carioca Heitor dos Prazeres e do pernambucano Bajado (Euclides Francisco Amâncio). 

Há inúmeros rituais festivos no calendário brasileiro: Congo, Caboclinhos, Caiapós, Bumba Meu Boi, Reisados, Festas do Divino, entre tantas outras festas populares. Muitas delas são de desordem e improvisação, como o Carnaval. Outras, de caráter religioso ou histórico, são acontecimentos mais ordenados e seguem ritos já estabelecidos. Certamente as festas da desordem são as de maior alegria. Contudo, todas essas festividades estão registradas na arte popular.

Mas há também o cotidiano prazeroso e o trabalho de todo dia. Noemisa Batista dos Santos, ceramista do Jequitinhonha, compõe cenas das mais diversas atividades do dia a dia, principalmente aquelas de atribuição feminina. Outra grande mestra das narrativas do cotidiano é a artista alagoana Maria Luciene da Silva, conhecida como Sil, hoje uma das mais importantes ceramistas do país. Sua narrativa é complexa e rica em pormenores, em que diferentes cenas se acumulam numa única peça – a mãe que lê para o filho, viajantes com trouxas na cabeça, violeiros e dançarinos, padre, noiva e noivo na porta da igreja e tantas outras cenas corriqueiras. 

Nas poéticas d’alma popular, pulsa a vida do povo brasileiro. Criadas por mãos que valorizam o fazer, são poéticas ricas de significado e de verdade. São expressões cheias de vida, nas quais tudo respira e palpita – até as pedras. 

Edna Matosinho de Pontes e Fabio Magalhães